DELAÇÃO: VÍCIO OU VIRTUDE?
Após os fatos, as análises. Depois das análises, a reflexão.
Li na sexta-feira (26/08), no avião, o texto de José Carlos Dias, na seção Tendências/Debates da Folha, analisando a delação premiada; e, no mesmo jornal, a coluna de José Sarney abordando, de maneira mais literária, o mesmo tema.
Lembro-me de me sentir incomodado com o fato de ambos os autores, separadamente, situarem a delação como “vício de caráter” (Dias): “Delação constitui conduta gravíssima, denota vício de caráter, deformidade que jamais deveria ser objeto de barganha”.
Em Sarney, o assunto é caracterizado por termos como “maldito” (o que delata, como Calabar), “vendeu” (como delatou, o que fez Judas Iscariotes), “denunciou” (também como delatou, como Joaquim Silvério dos Reis), virar sinônimo de “insulto” (comportar-se como Calabar, Judas ou Silvério dos Reis).
Incomodei-me a ponto de anotar no jornal: “qual seria o comportamento virtuoso?", e recortar ambas as matérias, sob o olhar curioso da aeromoça, para refletir depois.
Sim, porque, se a delação é um vício (ou denota um), deveria haver uma virtude correspondente, para substituir este comportamento no cidadão virtuoso.
Logo na segunda-feira (29/8), na mesma seção do mesmo jornal, Carlos Fernando dos Santos Lima retoma o assunto, elucidando as metáforas do imortal: “Nenhuma pessoa delatada é Jesus ou Tiradentes. Não há regra moral na omertà, não se pode admitir como obrigação ética o silêncio entre criminosos. Na verdade, a obrigação é com a sociedade”.
Gostei da "obrigação com a sociedade", porque essa formulação materializou parte do meu desconforto com o ataque à delação.
Mas o desconforto não passou de todo.
Primeiro, porque continuei sem saber tratar-se de vício ou virtude. As metáforas, de um lado e de outro, ilustram e dão força ao argumento, mas não chegam ao âmago do conceito.
Segundo, porque ainda precisamos de um critério: quem decide se o delatado é Jesus ou não? O promotor Santos Lima apressou-se no seu eloqüente argumento em taxar de criminoso o delatado – e o delatado ainda não é criminoso, pois a delação ocorre no processo de investigação, na formação da culpa, que antecede o processo. Logo, não se pode falar em “silêncio entre criminosos”, mas em silêncio entre os investigados, e portanto falta critério para decidir se o investigado é digno de silêncio ou de delação.
Vamos refletir sobre ambos os problemas.
1) Vício ou Virtude?
Quando preciso de virtudes, vou a Aristóteles. Penso que o estagirita inaugura a sistematização do que é virtuoso e do que é vicioso, bem como do que é justo e do que é justiça, e ainda do que é felicidade. Tudo em um único volume, o Ética a Nicômaco. Sem dúvida, quem quiser comprar um único livro na vida, este tem um excelente custo-benefício.
Ali esclarece que a virtude, como disposição de caráter, é em primeiro lugar um hábito – um bom hábito – diferenciando-se dos maus hábitos do vício.
A exigência do habitual foi (bem) mais tarde colocada na formulação do conceito de justiça – a virtude por excelência – de Justiniano: não apenas ius suum cuique tribuens (dar a cada um o que é seu), mas constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuens: constante e perpétua vontade de dar a cada um o que é seu. Logo, estamos falando de disposições de caráter que caracterizam o comportamento constante do indivíduo, ocorrem como hábito, sempre e a qualquer tempo, identificando claramente como exceção os comportamentos diferentes desse hábito.
Aristóteles lista como virtudes traços como a Coragem (entre a covardia e a temeridade, respectivamente falta e excesso viciosos); a Calma (entre a pacatez e a irascibilidade); a Modéstia (entre o acanhamento e o despudor), dentre outras.
Se, como afirma Sarney, a delação é instituto grego de Sólon (638-558), Aristóteles (384-322), a considerá-la vício, não se furtaria a trazê-la para a discussão. Mas, nada de delação em Aristóteles.
Essencialmente, não há como considerar a delação como hábito, excetuados os informantes profissionais (estes podem ser motivo de discussão à parte; porém creio que a virtude ou vício da delação será para eles um problema menor).
Para o ser humano comum, entretanto, a decisão de delatar é extra-cotidiana. Trata-se de uma decisão muito diferente da miríade de decisões que tomamos em nosso dia-a-dia, que formam nossos hábitos e nos caracterizam. Talvez a decisão de uma vida.
Portanto, tratando-se de decisão e tratando-se de uma decisão de lealdade (ao amigo ou “à sociedade”), a discussão remete-se para a ética da decisão em situação de dilema – e para o terreno da subjetividade.
O melhor a fazer nesses casos, em minha opinião, é pesar os prós e os contras das conseqüências de cada alternativa de decisão, e buscar o maior bem para o maior número ou o menor mal para o menor número.
Mas eu sou adepto da ética da responsabilidade, ou do cálculo de conseqüências. Outras opiniões chamariam isso de oportunismo: os principistas (mas há algum princípio que tenha previsto o dilema da delação?); e os finalistas, que buscariam o fim sacrossanto que justificaria a decisão mais conveniente (algo como fazer caixa dois – meio sórdido – para seu partido ganhar as eleições – finalidade justa). E assim diferentes abordagens éticas dariam diferentes respostas à pergunta.
Portanto, a análise de vícios e virtudes remete à análise de decisão ética e esta não resolve, a priori, se a delação é boa ou ruim.
2) Quem decide se o delatado é criminoso ou inocente?
Esta é realmente uma pergunta excitante.
Não adianta apelar para a lógica simples de que, se não se trata de criminoso, não há o que delatar. Dir-se-ia: como se pode delatar um inocente? Será que, por definição, o delatado é criminoso – a menos que minta o delator? Como a chantagem, a delação necessitaria de uma falha de caráter da vítima para se apoiar?
Vejamos.
Não pensavam os romanos que perseguiam Jesus que ele era criminoso? Para os portugueses, não era Tiradentes subversivo? Aliás, se foi perseguido e preso, não o foi por ordem de uma autoridade constituída – como um promotor ou uma CPMI? Não era Calabar um traidor para os portugueses e um herói para os holandeses? Qual era a autoridade instituída em Pernambuco?
Sabemos que estas decisões são tomadas bem mais tarde, pelos vencedores.
No momento em que os acontecimentos se desenrolam, contudo, temos apenas convicções. Duas convicções, e contrárias. Um lado contra o outro.
Os delatados "heróicos" citados participaram de acontecimentos políticos, ou, no mínimo, sociais, argumentar-se-á. Mas não é esse o caso em tela? Não se trata de política e convicções éticas? Se, de um lado, Sarney compara os petistas a santos e heróis, Santos Lima não os estará comparando a criminosos comuns?
Ninguém está discutindo o enriquecimento pessoal, como o caso do fulano que ganhou o jipinho. Este foi claramente anti-ético (embora não criminoso).
Estamos falando de militantes convictos que aparentemente agiram sob a ética finalista (que, repito, não é a minha ética pessoal).
Novamente, o problema recai na análise ética da situação específica, não havendo definição apriorística da conduta adequada. Nesse caso, a conduta deverá ser resultado do confronto político de convicções conflitantes e auto-justificáveis.
Portanto, o parlamento é o fórum por excelência para discutir-se a adequação ou não da conduta delatora, em cada caso.
E não a delegacia.