Sunday, September 09, 2007

54386


Estava revirando papéis antigos quando encontrei este texto de 1988, que julgo ainda valer a pena. O leitor irá perdoar alguns termos datados os quais, estou certo, reconhecerá. Lá vai.

" Era uma vez, num país muito distante, uma Loteria Federal que só dava 54386.

Por maiores que fossem os esforços das autoridades dirigentes da Caixa Econômica, a coisa não saía disso: 54386.

Uma Comissão Especial Interna foi destacada, e não chegou a nenhuma conclusão, o que não causou espanto a ninguém.

Uma Comissão Parlamentar de Inquérito, formada por eméritos senadores e deputados federais, apoiada por delegados da polícia federal, realizou investigação durante noventa dias e o resultado foi o mesmo (54386).

O público estava indignado - mormente o de apostadores que não haviam comprado o 54386. O escândalo não saía das primeiras páginas.

O governo, em Brasília (aquele país distante tem uma capital que também se chama Brasília), decidiu intervir de maneira discreta e sensata (o que causou espanto geral), e contratou uma equipe de especialistas estatísticos para estudar o assunto.

Conclusão dos estatísticos: a probabilidade de ocorrer o que estava ocorrendo era de 0, 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 1 e meio porcento. Uma empresa de auditoria independente auditou o trabalho dos estatísticos e concluiu que os cálculos estavam de acordo com os Princípios Estatísticos Geralmente Aceitos (PEGA).

O Institudo de Matemática e Estatística da USP (do país distante) refez os cálculos pelo computador central da Poli e chegou à probabilidade de 15,00 x 10EE-37 +/- 5 x 10EE-38, número este que alguém observou ser o mesmo que o outro.

A conclusão era uma só: não podia ocorrer. Tinha que sair outro número, ao menos de vez em quando.

Mas não saía: só saía 54386.

As bolinhas do sorteio eram substituídas semanalmente, e submetidas a rigorosos testes de aleatoriedade antes e depois dos sorteios. Antes e depois dos sorteios dava qualquer coisa: mas no sorteio mesmo, no oficial, dava 54386.

Contrariado, o recém-chegado presidente da Caixa Econômica concordou em utilizar bolinhas viciadas para ver se conseguiam barrar o 54386. Viciaram-se as bolinhas de modo a dar 73625, número que foi obtido 499 vezes em 500 lançamentos (num deles, o 2 falhou e deu 4), o que foi considerado aceitável; mas, no dia do sorteio oficial, o resultado foi o de sempre: um novo presidente para a Caixa Econômica.

A hipótese de falha das bolinhas foi rejeitada quando se verificou que dava 54386 até em sweepstake.

O número de pessoas indignadas diminuía, e o número de pessoas atrás de um dos bilhetes das quatro séries de 54386 aumentava atrás do número de vezes em que o número se repetia; aumentavam também os seguintes números:

- de casas lotéricas depredadas;
- de bilhetes com outros números queimados;
- de casos de violência policial contra apostadores;
- de acidentes com vítimas nas rodovias estaduais;

enquanto que diminuíam os números:

- de depósitos nas cadernetas de poupança;
- de popularidade do presidente da república;
- de pessoas que acreditavam na democracia;
- de chances de ocorrer o número 54386 novamente;

enfim, todos os números do país subiam ou desciam vertiginosamente, exceto um deles, que permanecia constante: o leitor já deve saber qual é.

No intuito de fazer tudo pelo social, o presidente decretou que se imprimissem séries especiais do número 54386, de maneira a mais pessoas poderem-se beneficiar, assim como sua popularidade.

Depois acabou decretando que a venda de todos os bilhetes se efetuasse exclusivamente através dos agentes do Banco Central, uma vez que os bilhetes já funcionavam como moeda corrente: com uma unidade 6 tomava-se ônibus; com uma dezena 86 entrava-se em qualquer cinema; a centena 386 levou à falência diversas empresas de vale-refeição; automóveis zero quilômetro podiam ser comprados com as dezenas anterior e posterior.

Criou-se um mercado futuro de opções por bilhetes, o que começou a derrubar a bolsa, o ouro, o black e o over. O programa 'Globo Economia' com a Lilian Wite Fibe saiu do ar e foi substituído pelo 'Globo Loteria' com o Nuno Leal Maia. Paulo Francis chegou a comentar 'o 54386 / é mais cérto / do que a mórte / e os impóstos'.

E assim, o mercado de bilhetes 54386 e correlatos foi dominado pelos tubarões da especulação financeira, e o povo voltou à sua vida habitual, esquecendo-se da Loteria Federal e do 54386.

Esta situação perdurou até que, lá no Céu, São Pedro contratou um brilhante analista de sistemas recentemente falecido de ataque cardíaco, durante o desenvolvimento de um projeto de controle de armazéns aduaneiros. O analista encontrou um 'bug' no Sistema de Apoio à Decisão de Destinos Humanos (SADDH). Sanado o defeito, o sorteio seguinte deu borboleta, 13."

Agosto de 1988