Thursday, August 21, 2008

Conhecimento sobre a prática e conhecimento para a prática – reflexões sobre o pesquisar


Introdução – um antigo problema e reclamações de todos os lados

Um profissional médio durante sua socialização organizacional ouvirá diversas vezes discursos sobre a academicidade do conhecimento universitário, responsável por tornar pedantes e inúteis professores e consultores de organização eruditos. Tentará, em sua busca por aperfeiçoar-se profissionalmente ou pela resolução de um problema, recorrer à literatura acadêmica e encontrará uma linguagem morosa, inacessível e com poucas “dicas” sobre o que realmente ele quer resolver.

De outro lado, o acadêmico profissional ouvirá repetidas vezes a irritante pergunta sobre se ele “apenas” dá aulas ou se trabalha também. Enfrentará o descaso por parte dos profissionais de empresa “sérios”, e uma enorme dificuldade em conseguir destes disponibilidade para uma entrevista ou outra forma de cessão de dados para pesquisa.

Não somente a linguagem e o conhecimento da prática profissional e da prática acadêmica são diferentes, mas as pessoas parecem pertencer a mundos diferentes.

Enganos freqüentes sobre os dois mundos


O primeiro e mais profundo engano sobre o conhecimento prático é o de que ele prescinde de qualquer abstração ou esteja totalmente livre de teoria. Este engano é proveniente de uma visão “elitista” de teoria, que a coloca nas alturas do classicismo, e ignora que mesmo a ação humana mais comezinha atua sobre meios no presente para a obtenção de resultados futuros, e, portanto, depende de uma noção de causalidade. Para parar no posto de gasolina para colocar gasolina, por exemplo, o motorista tem em mente a teoria de que carros sem gasolina param no meio da rua, e de que postos de gasolina fornecem o combustível por um preço. São duas relações de causa-e-efeito necessárias para uma ação relativamente simples. Nas palavras de Douglas McGregor:



“Todo ato administrativo se baseia em pressuposições, generalizações e hipóteses – quer dizer, em teoria. Nossas pressuposições são freqüentemente implícitas, às vezes totalmente inconscientes, muitas vezes conflitantes; apesar disto, elas determinam nossas previsões de que se fizermos a, ocorrerá b. Teoria e prática são inseparáveis.” (MCGREGOR, 1992:17).

Outro engano freqüente é o de que o conhecimento utilizado pelo administrador praticante seja ele todo derivado do conhecimento científico – ou seja, de que todas as relações de causa-e-efeito utilizadas “na prática” tenham sido conhecimento científico, um dia. Este pressuposto encontra-se arraigado em diversas discussões acerca da diferença entre os conhecimentos. Whetten (1989), por exemplo, ao discutir critérios de qualidade para artigos científicos na área de negócios, ressalta que o conhecimento teórico interessante é aquele ainda não totalmente comprovado, enquanto que o conhecimento do praticante deve ter sido suficientemente verificado para poder ter chegado aos livros-texto didáticos e transmitido aos praticantes:

"If the theoretical model is a useful guide for research, by definition, all the relationships in the model have not been tested. If all links have been empirically verified, the model is ready for the classroom, and is of little value in the laboratory.” (WHETTEN, 1898).
Não obstante a idéia implícita, o autor coloca já uma diferença importante no critério de qualidade dos dois tipos de conhecimento, ao menos quando conhecimento prático tenha realmente sido derivado do conhecimento científico. E, se esse pressuposto não é verdadeiro para todo o conhecimento prático, ao menos o é para uma parte dele; pois a existência de um corpo de conhecimento científico disponível ao praticante, e a exigência de estudos formais para o exercício desta prática está na própria raiz da definição de um campo profissional. McGregor abre o seu O lado humano da empresa com essa discussão:

“O profissional recorre ao conhecimento científico, seu e de seus colegas, e ao conhecimento obtido através da própria experiência. A dependência maior da primeira fonte de conhecimento do que da segunda é o que distingue o profissional do leigo. Nesse sentido, já começa a ser possível para o gerente de empresa tornar-se um profissional.” (MCGREGOR, 1992:15).

Van de Ven e Johnson (2006) irão corrobor a afirmação de que o pesquisador acadêmico não detém o monopólio da criação de conhecimento. Entretanto, devemos lembrar de que as teorias de ação (ou relações de causa-e-efeito) aprendidas por experiência e utilizadas pelos praticantes, muito embora possam ser úteis, não necessariamente são válidas, certas ou verdadeiras. Lembremo-nos de que, durante séculos, agricultores fizeram oferendas aos deuses como parte do seu processo produtivo, na “certeza” de que a causa oferenda resultasse no efeito boas colheitas algum tempo depois; navegadores singraram com sucesso os mares do mundo baseados em cartas estelares geocêntricas; e cozinheiras católicas benzeram o forno como parte da receita do bolo.

Van de Ven e Johnson (2006) defendem a idéia de que teoria e prática são formas diferentes de conhecimento, e que daí deriva-se a conclusão de que o problema (da separação desses conhecimentos) não é o da transferência do conhecimento (como se deduz a partir do pressuposto de que o conhecimento prático é todo derivado do científico), mas um problema de produção dos conhecimentos – que são isoladamente produzidos ora por acadêmicos apartados da prática, ora por praticantes sem contato com os acadêmicos. Fazem uma proposta de trabalho em times multifacetados, a qual discutiremos adiante. Primeiramente vamos salientar quais são as diferenças entre os dois tipos de conhecimento – e entre os dois tipos de produtores de conhecimento.

Características do conhecimento teórico: contexto, objetivos e critérios de qualidade

A produção de conhecimento ocorre dentro de um contexto material de existência social dos produtores. O pesquisador acadêmico produz dentro de uma comunidade de prática que é acadêmica, e que possui seus critérios de qualidade segundo os quais serão julgados produção e produtor. A própria sobrevivência social e biológica do acadêmico dentro de sua comunidade depende de que cumpra critérios, prazos, e tarefas próprias de sua profissão. Assim, não conseguirá permanecer dentro de um programa de pós-graduação, a partir do qual pode pleitear fundos para suas pesquisas, se não apresentar determinada quantidade de produção de conhecimento especificamente refletida em publicação em periódicos científicos avaliados por seus pares – e não quaisquer periódicos científicos avaliados por pares, mas somente aqueles qualificados como válidos pela organização formal de sua comunidade acadêmica. Mesmo dentro de um programa que o acolha, a quantidade de fundos que poderá conseguir para financiar sua próxima pesquisa dependerá de sua publicação passada.
Portanto, o objetivo “prático” cotidiano do pesquisador é conseguir publicar. Qualquer outro objetivo que norteie seu projeto de pesquisa que irá produzir conhecimento teórico terá, por força material, que subordinar-se a este objetivo: publicar em periódicos qualificados pela sua comunidade de prática.

Para conseguir publicar nessa mídia, o pesquisador deverá cumprir com os critérios de qualidade da produção teórica. Estes são fartamente disseminados pelos próprios editores das revistas científicas, no afã de ajudar os pesquisadores. Resumidamente, os critérios são o que – quais fatores caracterizam a situação problema ou como se pode descrevê-la; como – como os fatores se relacionam, quais as relações de causalidade envolvidas; o porquê – quais os pressupostos, por que estes fatores e não outros; e quem/quando/onde – condições e limitações da validade do conhecimento produzido. Adicionalmente, detalhada descrição do método utilizado na produção de conhecimento, e, implícito à idéia de condições de validade, a necessidade de determinado grau de abstração e generalidade para além dos dados utilizados na produção do modelo científico (WHETTEN, 1989; VAN DE VEN, 1989; VAN DE VEN E JOHNSON, 2006). Acrescente-se ainda a condição citada mais acima, de Whetten (1989), de que o conhecimento proposto deve ajudar a pesquisa a caminhar, e fará isto quanto mais inovador e “inacabado” encontrar-se.
Características do conhecimento prático: contexto, objetivos e critérios de qualidade

O conhecimento produzido pela experiência do praticante, isto é, aquele conhecimento que o profissional não aprendeu na escola por transmissão do conhecimento científico estabelecido e codificado no corpo do seu conhecimento profissional, ocorre dentro de uma comunidade de prática orientada para a consecução de objetivos organizacionais caracterizados pela necessidade de eficiência, inovação.
A exigência de seus pares reflete-se neste profissional na forma de competência. Esta é definida por Le Boterf (1995) como um saber agir responsável e validado (por pares), saber agir este que consiste num saber mobilizar, saber integrar e saber transferir recursos – conhecimentos, capacidades e outros recursos pessoais, dentro de um contexto profissional.

“A competência não reside nos recursos (conhecimentos, capacidades...) a serem mobilizados mas na mobilização mesma desses recursos. A competência pertence à ordem de “saber mobilizar”. Porque, se há competências, é necessário o emprego de um repertório de recursos (conhecimentos, capacidades cognitivas, capacidades racionais...). Este equipamento é a condição para a competência.” (LE BOTERF, 1995:17).

Portanto, a pressão dos na produção de conhecimento profissional é exercida no sentido da resolução de problemas inéditos, para os quais o profissional deve apresentar uma capacidade dinâmica de aprendizagem e rápida e eficiente mobilização de recursos. O objetivo básico é atuar na resolução de problemas organizacionais imediatos, concretos e com os quais o ator tem uma relação mais direta. Os critérios de qualidade resumem-se basicamente ao resultado prático da aplicação do conhecimento à situação de trabalho, não havendo necessidade de justificação metodológica ou comprovação de generalidade para extrapolação futura.

Conclusão: diferenças intransponíveis e propostas conciliadoras

Depreende-se do exposto que, se é verdade, como afirmam Van de Ven e Johnson (2006) de que o problema da teoria e da prática é um problema da produção do conhecimento, que as diferenças encontram-se nos produtores e nas condições de produção, em primeiro lugar, e somente depois nos dois tipos de conhecimento acabado. Enquanto o conhecimento é o centro da vida do pesquisador acadêmico, ele é apenas um instrumento na mão do profissional, que tem com ele uma relação que se caracteriza por uma certa indiferença – tanto faz de onde veio ou a forma que assume ou ainda o seu grau de generalidade ou validade, desde que possa ser mobilizado e resolva o problema “prático”.
O horizonte de produção (timing) também é bastante diferente: o pesquisador trabalha com o médio e o longo prazos, enquanto que o profissional trabalha com o curto prazo. Os conhecimentos possíveis de se obter nesses diferentes prazos são diferentes entre si.
E finalmente, o conhecimento que traz comida à mesa do pesquisador é o conhecimento que avança a pesquisa, enquanto que o conhecimento do qual depende o profissional é aquele que “funciona”: portanto, se é científico, deve estar no corpo da ciência normal; porém não precisa ser científico desde que traga os resultados.

O conhecimento científico necessita ter generalidade, e o grau dessa generalidade deve ser bastante determinado; o conhecimento prático pode ter sua validade restrita a uma organização ou a um setor dela, e a fronteira dessa validade pode ser bastante fluida.
Considerando o problema complexo, e portanto afeito a múltiplas visões, Van de Ven e Johnson (2006) propõem uma produção de conhecimento em times que reúnam acadêmicos de áreas diferentes e praticantes profissionais, em projetos de pesquisa engajados e participantes; com uma administração da produção de conhecimento e uma comunicação entre atores de diferentes backgrounds culturais que denominam arbitragem.

A proposta tem aspectos interessantes como o envolvimento dos profissionais e das empresas pesquisadas, como forma de aumentar o engajamento de todos os tipos de atores, e garantir a relevância da pesquisa (critério muitas vezes sufocado em meio à quantidade de exigências metodológicas na pesquisa acadêmica); bem como a idéia de se rever o papel do pesquisador.
Talvez a idéia mais interessante seja a da formação de uma comunidade de pesquisa mais ampla, para garantir aquele envolvimento. O desenvolvimento de tecnologias digitais de socialização pode facilitar a aplicação dessa idéia, e favorecer uma postura mais democrática em termos da disseminação desse conhecimento e atração de novos atores para contribuir.
Outros aspectos são mais utópicos, pois desconsideram as bases materiais da produção de conhecimento, tanto científico – que depende de prazos e financiamentos – quanto profissional, que depende de tempo do profissional. Assim, propostas como extensão dos prazos de pesquisa para aumentar a familiaridade e confiança entre os participantes, e a utilização de múltiplos referenciais teóricos sobre o mesmo objeto – o que aumenta exponencialmente a complexidade e duração do projeto e dificulta a publicação – parecem ainda pertencer ao campo da utopia.

De uma forma ou de outra, a preocupação com a relevância e o maior envolvimento dos profissionais na produção do conhecimento científico promete aumentar a qualidade e aplicabilidade dos projetos de pesquisa.

Referências Bibliográficas

Le Boterf, Guy. De la competénce – essai sur un attracteur étrange. Paris: Les Editions Dórganisation, 1995.
McGregor, Douglas. O lado humano da empresa. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Van de Ven, Andrew H. e Johnson, Paul E. Knowledge for theory and practice. Academy of Management Review, 2008, V. 31 n. 4 802-821.

Van de Ven, Andrew H. Nothing is quite so practical as a good theory. Academy of Management Review, 1989, V. 14 n. 4 486-489.

Whetten, David A. What constitutes a theoretical contribution? Academy of Management Review, 1989, V. 14 n. 4 490-495.