Afinal, para que mais um Homem-Aranha?
PERDI O SONO às três e meia da madrugada e, ao invés de ficar rolando na cama resolvi ver um filme idiota na TV. Escolhi The Amazing Spiderman, de Marc Webb (nome apropriado para dirigir o filme, aposto que devia ser um sonho de infância), com texto de James Vanderbilt. Afinal, para que mais um filme do homem-aranha? só para voltar a dormir.
Decepcionei-me: o filme é muito bom! Aí que não voltei a dormir mesmo.
Chama a atenção logo de início pela fotografia. Não é a fotografia típica de Hollywood, mas para nós brasileiros, tem aquela luz “de novela”. Clima de novela. Aliás, parece novela. Não sei o termo técnico para isso (talvez o Arthur Bandeira possa nos ajudar e escrever lá embaixo para nós). As primeiras cenas então deram a impressão de filminho para vir o sono. Mas depois esse efeito compensa: ninguém espera efeitos especiais em novela, e a coisa ganha um aspecto de realismo surpreendente. Os movimentos do homem-aranha, no chão e no céu de Nova Iorque, o lagartão em que o Dr. Connors se transforma, tudo parece continuação natural de uma iluminação cotidiana.
Para fazer o tio Ben e a tia May, o diretor “apelão” invocou espíritos ancestrais: Martyn Sheen e Sally Field. Os melhores tios de homem-aranha do cinema até hoje. Andrew Garfield, que na primeira luz “de novela” parece um garoto jovem demais inevitavelmente destinado ao fiasco, acaba convencendo como Peter Park, justamente pela ingenuidade juvenil, magistralmente manifestada pelo seu sorriso idiótico. A pobre Emma Stone não tem, em termos de beleza, chance para a Gwen Stacy da imaginação cincoentona que leu o gibi preto-e-branco direto da banca de jornais, mas é uma Gwen que sai da folha de papel. Gwen era minha namorada de aracnídeo predileta que um dos roteiristas de Stan Lee teve a desumanidade de matar. Parker teve que se contentar com Mary Jane Watson depois disso. Pas mal, pas mal.
Webb capturou o espírito aracnídeo que me conquistou na adolescência: o humano do herói e dos demais personagens (no filme, Peter diz ao pai de Gwen durante o jantar que o Aranha não é herói). Foi o primeiro super-herói que ouvi falar que teve úlcera de estômago, e que a namorada morreu. Pode imaginar isso no Batman, no Super-homem, ou em outros heróis de ideologia pós-guerra (Capitão América, Homem-de-Ferro, Hulk e Príncipe Namor, na série vendida nos postos Shell)? Não.
O diretor foi fundo na “desmaquiavelização” dos personagens, dando humanidade a todos os bandidos: Flash Thompson faz bullying em Peter (e em quase todo mundo na escola), mas entra em crise depois; o assassino do tio Ben (que odiei durante décadas) joga para Parker um achocolatado que ele não tinha podido comprar por falta de dois centavos. Este elemento é obra da dupla roteirista-diretor, não estava no gibi. A morte do tio Ben no filme é acidental, a arma dispara durante a disputa pela sua posse. O doutor Connors tem uma personalidade afetada pela mutação genética, mas salva Peter de uma queda no final. O personagem mais plano é próprio Peter Parker, e isso é proposital. Depois de ganhar poderes, extrapola e mostra seu lado sombrio quando humilha Flash na quadra da escola por vingança.
O roteiro pega um trecho da história do homem-aranha do qual me lembro bem, da morte do tio Ben e o começo do relacionamento com Gwen. A história é fiel aos quadrinhos, com eventuais inserções literárias para reforçar o percurso humano do herói. Por isso não tenho pudores em contar o final: termina com Peter e Gwen encontrando-se numa aula de literatura.
Detalhe metalinguístico do roteirista, que sabe muito bem que ambos são da área de bioquímica e que dificilmente se encontrariam – os dois – numa aula de literatura. A professora diz que só há um tipo de enredo na literatura: o do autoconhecimento do herói. Peter, em contato com vilões tridimensionais e com suas próprias limitações, sai de seu próprio bidimensionalismo vingativo e entra em contato com sua humanidade.
Talvez um pouco de didatismo dirigido à assistência ingênua, mas tenta sair do entretenimento linear. Melhor que nada. Está em consonância com o best-seller de Thomas Foster, Para Ler Literatura como um Professor (disponível em Português pela Lua de Papel, recomendo), que começa o livro dizendo isso: a busca do herói tem uma razão declarada e uma verdadeira, e esta última é sempre autoconhecimento. A declarada é em geral abandonada em meio à trama, pois não é a coisa em si. Peter começa a vida de aranha perseguindo o assassino do tio, e uma das últimas cenas mostra o retrato falado do assassino abandonado no quarto do adolescente. Não era o importante.
Veredicto: surpreendente, alto astral, tridimensional. O melhor homem-aranha do cinema, de longe. No mínimo, melhor que ficar rolando na cama.
Referencias:
Webb, M. The Amazing Spiderman (2012). http://www.imdb.com/title/tt0948470/?ref_=ttfc_fc_tt&licb=0.8778123097254218 . Para quem tem NET: NOW -> Programas de TV -> Telecine. Se tem NOW não tem que pagar.
Foster, Thomas C. Para ler literatura como um professor. São Paulo, Lua de Papel, 2010. . Na Cultura: http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=22097446&origem=ac&p=thomas+c+foster
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