EXERCÍCIO DE REFLEXÃO SOBRE UM PENSAMENTO DE PASCAL
Não é assim que se faz. Como doutor em alguma coisa (e não Filosofia!), não posso dar maus exemplos e tenho que ser o primeiro a afirmar, principalmente aos meus alunos: para encarar Pascal, eu deveria antes ler tudo o que de importante se escreveu sobre ele. Saber com especialistas não só em Filosofia, mas em Pascal especificamente, quais as interpretações e críticas são consideradas válidas na atualidade, e quais foram descartadas. Só depois de longo trabalho de pesquisa poderia arriscar-me a fazer o que vou fazer logo abaixo de forma deslavada e ingênua. Pois obviamente não serei nem original, e, com a sorte que ando, nem me pouparei de minhas próprias bobagens, aquelas que, como bom brasileiro, sempre digo quando adentro terrenos que não domino. Sequer a Introdução, escrita por André Comte-Sponville, eu li. Fui direto no Pascal. É outra coisa que não posso recomendar aos meus alunos. Leiam sempre a Introdução!!
Mas faço isso como um exercício, algo como um trabalho durante a aula, para treinar meu próprio pensamento, e deixo-o aqui, público, para provocar alguma discussão e ver se algum filósofo versado em Pascal (ou que ao menos tenha comparecido a essa aula) possa me ajudar com minhas falhas.
O Pascal:
(21*)
"O que é o eu?Um homem que se põe à janela para ver os que passam, se eu estiver passando, posso dizer que ele se pôs aí para me ver? Não, pois não pensa em mim em particular. E quem ama alguém por causa de sua beleza, ama-a de fato? Não, pois a varíola, que matará a beleza sem matar a pessoa, fará com que não mais a ame.
E se me amam por meu discernimento, por minha memória, será que amam a mim? Não, pois posso perder essas qualidades sem me perder. Onde então estará esse eu, se não está nem no corpo, nem na alma? e como amar o corpo ou a alma a não ser por essas qualidades, que não são o que faz o eu, já que são perecíveis? amaríamos a substância da alma de uma pessoa abstratamente, e algumas qualidades que nela existissem? Isso não é possível, e seria injusto. Portanto, jamais se ama alguém, mas somente qualidades.
Assim, que não se zombe mais daqueles que se fazem honrar por cargos e funções, pois só se ama alguém por qualidades de empréstimo." (*21=Brunshvicg 323; Lafuma 688; Le Guern 582)
A discussão sobre a procura do eu lembra-me textos de ioga que eu lia em minha juventude. Os autores, místicos e herdeiros de uma complexa cosmogonia brâmane que inclui renascimento e imortalidade da alma, utilizavam-se precisamente deste argumento progressivamente introjetivo para demonstrar a transcendência do eu durante exercícios de meditação (não está no corpo, então não é corpo - e logo possui um corpo; não está na mente, então não é mente, logo possui uma mente; e mesmo a alma, que não consiste para o mestre brâmane o que consiste para o filósofo francês, mesmo essa, lá como aqui, não é o eu, mas uma posse deste, como o corpo e a mente).
Uma reflexão sobre a existência e a natureza do eu requereria o trabalho de uma vida. Pensarei nisso depois. Vou, mais modestamente, tentar pensar a natureza do amor de uma pessoa por outra desviando da discussão acerca da natureza do eu.
Ora, do fato de não se encontrar o eu que se procura não decorre que se ama apenas qualidades, e daí, ainda, justificar-se a busca de qualidades (como cargos e funções) para se ser mais amado do que os demais.
O raciocínio de Pascal pareceu-me uma combinação falaciosa de metafísica e evidência empírica. O amor que ele critica é um amor sistematizado em uma categoria lógica pré-existente, e comporta-se de acordo com a categorização: "quem ama alguém por causa de sua beleza", conclui, se terminar a beleza, terminará o amor. Definido o amor na categoria "amor devido à beleza" - que pode resistir a algum teste de evidência empírica - este se comporta de acordo com um silogismo - se é efeito daquela causa, extinta a causa, extinguir-se-á o efeito.
Existirá uma pessoa de carne e osso que ama outra pessoa de carne e osso somente devido à beleza? Pode ser. Se houver, terminando a beleza, terminará o amor? Isto acontece para a maioria das pessoas (que amam somente devido à beleza)? o mesmo em relação às características "da alma".
Como o eu, os motivos do amor podem ser obscuros, principalmente para os atores envolvidos. Quando eu e minha esposa (minha evidência empírica) queremos matar o tempo nos atazanando mutuamente, um pergunta ao outro se ele o ama, e porque. O porque sempre recai numa qualidade, e é motivo de chacota do provocador justamente por isso. A verdade, e o motivo da brincadeira, é que não se sabe porque se ama o outro, seja porque se trata de um sentimento dificilmente racionalizavel pelo sujeito do sentimento, seja porque não se sabe o que é "o outro" (um outro eu).
Mas dificilmente o amor terminará terminando a qualidade, e os amantes sabem disso - ao menos enquanto se amam.
Estamos falando do que Eric Fromm chama de amor erótico. Segundo este alemão frankfurtiano (logo, marxista, ou, ao menos, jovem-marxista), há diversos tipos de amor, e não só este. Há o amor fraterno e o amor parental. Ora, uma mãe sã não deixa de amar o filho depois da varíola. Ou mesmo depois de perder suas qualidades mentais. Ou mesmo que nunca as tenha tido. Ou será que amor de mãe é apenas um instinto de sobrevivência da espécie?
Sobrevivendo o amor à perda da qualidade (do que há evidência, por exemplo, os velhos que perderam a beleza e permanecem se amando), podemos supor ainda que o amor, dinamicamente, andará saltando de qualidade para qualidade, teimando em permanecer. Assim, terminada a beleza, passa-se a amar a outra pessoa pelas qualidades de sua alma, posteriormente descobertas; sobrevindo um acidente sobre estas, passa-se a amar pela ternura de sentimentos que resta na pessoa mentalmente debilitada. Mas, por que teimaria o amor em permanecer ligando uma pessoa à outra, saltando de qualidade em qualidade? se isto acontecer, pode-se explicar pela existência de um amor mais essencial, que busca justificativas a posteriori, mas que existe a priori para poder saltar e buscar justificação.
[continua]
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