Friday, December 12, 2008

Traços de uma Administração Latinoamericana

1. Digressão introdutória com pretensões causais
O management é um corpo de conhecimentos desenvolvidos para se lidar com a firma capitalista, que tem como principal característica a racionalidade da eficiência (ou racionalidade instrumental, de atingimento de objetivos). Esse “espírito” do capitalismo, nas palavras de Weber, tem ligação estreita com a ética protestante. Para caracterizar o “espírito” do capitalismo, Weber escolhe Benjamin Franklin, num texto onde um ethos de acumulação e geração de riqueza é formulado em forma de máximas comentadas. As máximas são:
1) Tempo é dinheiro. Quem desperdiça tempo com passeio ou vadiagem deixa de ganhar dinheiro e ao longo do tempo deixa de ganhar muito dinheiro. (visão temporal)
2) Crédito é dinheiro. O dinheiro se multiplica se você não gastá-lo por tempo suficiente.
3) O bom pagador é dono da bolsa do outro. Se o credor ouvir seu martelo cinco da manhã ou oito da noite, vai te dar mais seis meses de crédito; se o vir jogando bilhar ou numa taverna, vai querer o dinheiro imediatamente.
4) Por seis livras anuais você pode ter acesso e utilizar cem libras.
5) Se você desperdiçar 4 pence por dia, vai desperdiçar seis libras por ano, e deixar de poder usar cem libras. (WEBER, 1992)
Note-se que a lógica da acumulação envolve não apenas o modo de vida ascético, disciplinado e bom pagador, mas também um exímio manejo do crédito e dos juros. A idéia de juros pelo uso do dinheiro, e juro ganho pelo não uso do dinheiro tem um papel central no “espírito” do capitalismo e na acumulação de capital.
Weber atribui o sucesso desse ethos, desse modo de vida, ao seu casamento com a ética protestante, mais especificamente ao calvinismo e sua doutrina da predestinação. Ou seja, manejar bem o dinheiro, os juros, e viver de maneira frugal não só gera riqueza mas, e principalmente, identifica o agente como pessoa honesta, ética, e escolhida por Deus.
No plano ético, as diferenças já são monumentais. América Latina é católica, e durante séculos a cobrança de juros foi identificada com a usura e considerada pecaminosa pela igreja católica, para gáudio dos banqueiros de outras religiões, porque evidentemente não há um que cristão não precise de dinheiro emprestado. E aí já começam os problemas. Se quem me empresta é pecador, será que é pecado ser mau pagador? Além disso, o enriquecimento não é visto com bons olhos na doutrina católica. Há uma passagem do Novo Testamento em que Jesus diz claramente que é mais fácil passar um camelo pelo buraco da agulha que um rico entrar no Céu. Diversas correntes (ou seitas) da igreja católica preconizaram uma estética da pobreza, baseada na história do Cristo (que nasceu na manjedoura etc.), estética esta que ainda permeia boa parte do imaginário católico.
Em minha modesta opinião – e nesse caso é bem modesta mesmo – esse fator é o principal desencadeante das diferenças que se mostrarão futuramente. Outros fatores comumente acusados de fontes de nossos problemas – como uma fase monárquica, com estratos sociais legalmente instituídos; ou a escravatura, instituto de desigualdade também definido em lei; foram fatores que também ocorreram em países onde o capitalismo floresceu.
Tendo feito essa digressão introdutória com pretensões causais, vamos a algumas características do modo latinoamericano atual de administrar.
2. Duas Características do modo Latino Americano de administrar
1. Primeiro, talvez a característica mais patente, que Hofstede chama de Distância de Poder e define como o grau com que os membros da organização menos poderosos aceitam que este poder seja distribuído desigualmente; ou seja, uma aceitação da desigualdade por parte do menos favorecido (HOFSTEDE; HOFSTEDE, 2005). No caso latinoamericano, a medida abstrata que o modelo de Hofstede percebe refere-se a um fenômeno complexo.
a. Antes de mais nada, a desigualdade concreta e brutal que existe na sociedade e se reflete no microcosmo organizacional. Antes do traço cultural que aceita ou não a desigualdade, existe uma realidade ululante. Não há o que tergiversar sobre isto. A desigualdade econômica, cultural, de nível educacional, existente dentro da organização levaria, com ou sem ideologia, com ou sem herança histórica do passado, a uma atitude diferente entre os desiguais – do mais favorecido em relação ao menos favorecido e do menos favorecido em relação ao mais favorecido.
b. Elvira e Dávila, duas professoras mexicanas, dão nome a essas atitudes: a atitude do subordinado como “Respeito pela Autoridade”, e a atitude da chefia como “Liderança Paternalista Benevolente”, onde o superior assume uma responsabilidade pessoal de zelar pelo “seu” trabalhador e sua família (ELVIRA; DÁVILA, 2005).
c. Portanto, saindo da medição universal, aplicável a diversos países com o intuito de comparação, uma visão mais qualitativa mostra que a “distância” existe entre dois pólos relacionados e complementares. A simples mudança de atitude de um dos lados, ou introdução de outro padrão administrativo não transforma de imediato a relação, e por isso a característica latinoamericana é duradoura.
d. O outro lado do paternalismo é a dependência.
e. Assim, enquanto a metáfora mais comum do management é a de um time, a metáfora da administração latinoamericana é a família. “Somos como uma família”, “esta empresa é uma família” são frases freqüentemente verbalizadas por superiores e por subordinados na empresa latina. Enquanto um time guarda relações de camaradagem e solidariedade (bem como ódios e desentendimentos), a relação predominante é profissional, e, fundamentalmente, você se demite de um time. Na família, as relações não são do tipo “profissional”, e obviamente não se pode demitir ou ser demitido (exceto no caso do marido) – mas a relação entre pais e filhos, de onde vem o termo paternalismo, é para sempre.
f. Assim como a família tem (ou deve ter) papéis bem definidos, a administração latinoamericana preza a hierarquia. Embora a cultura do management anglo-saxã também atribua status e artefatos diferenciadores à hierarquia (tamanho e posição da sala, quantidade de janelas, liberdade de vestimenta e estacionamento), tenta disfarçar esta diferença no tratamento interpessoal. Ela é feia e deve ser sutilmente insinuada. A cultura latinoamericana faz questão de mostrar esta diferença, não só em forma de prerrogativas, estacionamento, restaurante, mas principalmente, no tratamento.
g. As conseqüências da simbiose paternalismo-dependência são:
i. centralização, baixa autonomia, predomínio de comunicação vertical, “precisa esperar o Doutor Paulinho decidir”, pedir e ficar esperando, ter medo de errar e ser punido etc.
ii. Evitação do conflito. Particularmente conflito em público (“na frente das visitas”) é bastante ofensivo e rude. A evitação do conflito pode ter conseqüências organizacionais graves, como revela o estudo de caso da Challenger feito por Chris Argyris (ARGYRIS, 1992).
iii. Também significa, em geral, um tratamento mais humano em momentos de necessidade e em especial no desligamento.
iv. Outro traço derivado da distinção da distância social é o personalismo: o “sabe com quem está falando”, a demanda por tratamento especial independentemente de como outras pessoas na mesma condição sejam tratadas.
h. Na pesquisa de Elvira e Dávila (2005) em empresas mexicanas, isto levou a práticas de contratação de amigos e parentes em detrimento de processos seletivos mais racionais; e preferência de pessoas menos confrontativas e que “contribuam para o clima de trabalho” (ELVIRA; DÁVILA, 2005).
i. Pelos mesmos motivos, o contato pessoal é bastante importante: guarda um sentido de proximidade com o poder, e ao mesmo tempo reforça a centralização.

2. A segunda característica bastante patente é a que Hofstede denominou Individualismo, e que de fato é um continuum que varia de individualismo até coletivismo. Um dos traços burocráticos da administração racional é a meritocracia, isto é, a cada um de acordo com seu mérito, que é uma espécie de amálgama entre a justiça racional e a divina, em particular no traço da predestinação calvinista. Este traço, individualista e competitivo, choca-se com a cultura coletivista (que não é exclusiva da América Latina, e nem está relacionada a perda de desempenho: o Japão, por exemplo, também é uma cultura coletivista). Hofstede define estes pólos da dimensão da seguinte maneira: na cultura individualista, os laços entre as pessoas são mais folgados, e espera-se que cada um cuide de si mesmo. Na cultura coletivista, ao contrário, os laços são bem mais apertados, os indivíduos nascem dentro desta rede contando com os outros para ajudar a cuidar de si, esperando em troca lealdade inquestionável.
a. O fato das relações de trabalho na AL transitarem principalmente pelas relações pessoais faz com que relações de lealdade (traço familiar) e de sociabilidade se sobreponham a relações de diferenciação individual.
b. Isto causa o fenômeno, tão estranho aos anglo-saxões, de que para fazer negócio com latinoamericanos deve-se primeiro desenvolver uma relação social – não basta o cartão de visita e a auto-apresentação. Tem que ser apresentado por alguém e almoçar, jantar, falar da família, fazer-se conhecer para que se estabeleça uma relação de confiança e lealdade.
c. Esta importância atribuída ao grupo reforça os traços de não-confrontação e de evitação de conflito, a fim de manter o “clima” do grupo. Esta harmonia grupal é mais importante do que “ter razão” individualmente; e este tipo de comportamento está ligado à promoção e desempenho na carreira (ELVIRA; DÁVILA, 2005).
d. O comportamento competitivo é visto como egoísta e desleal com o grupo.
3. Conclusão:
Tentei pautar meus exemplos em estudos não-brasileiros porque julgava que os traços brasileiros se afastariam sobremaneira dos traços da América Latina hispânica; e também porque julguei que, como brasileiro, eu olharia o modo hispânico com mais isenção.
Entretanto cheguei a resultados que caracterizariam perfeitamente um modo brasileiro de administrar. Prates e Barros (1997), da Fundação Dom Cabral, por exemplo, propõem um modelo para um “estilo” brasileiro de administração composto dos seguintes elementos:
· Concentração de Poder,
· Flexibilidade
· Paternalismo,
· Dependência
· Lealdade às pessoas
· Personalismo
· Impunidade
· Evitar o conflito
· Postura de Expectador,
· Formalismo
(PRATES; BARROS, 1997:59;68).
Como se vê, os grandes elementos da América Católica não só estão presentes mas caracterizam o modo brasileiro de administrar.


Referências
ARGYRIS, C. Enfrentando defesas empresariais. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
ELVIRA, MARTA M.; DÁVILA, ANABELLA. Cultura y administración de Recursos Humanos en América Latina. Universia Business Review-Actualidad Económica. Primer Trimestre 2005, pp. 28-45.
HOFSTEDE, G. ; HOFSTEDE, G. J. Cultures and organizations – software of the mind. New York, McGraw-Hill, 2005.
PRATES, M.A.S.; BARROS, B.T. O estilo brasileiro de administrar. In: PRESTES MOTTA, F. C. P. (ORG.); CALDAS, M. P. (ORG.) Cultura organizacional e cultura brasileira. São Paulo: FGV/Atlas, 1997.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1992.