Arreda, indesejável!
No
amanhecer de minha existência éramos pobres, meu pai era bravo e os carros eram
quadrados.
Morávamos
numa casa com quintal e jardim, e eu tinha uma tartaruga manca e um patinete.
Descia com ele nossa rua de terra. Brincava no mato. Ia a pé pra escola e
tomava tubaína na calçada. Apanhava muito na rua, mas não parava de brigar.
Lia tudo
que estivesse escrito. Adorava isso, decifrar um código secreto que alguém
tinha deixado pra trás, desafiador. Era possível saber que vinham 40 palitos de
fósforo na caixinha (em média), e que a garagem com um entra-e-sai de panos e
japoneses era "tinturaria". Descobri Monteiro Lobato, Júlio Verne,
Jack London, Louisa May Alcott, James Matthew Barrie, Lewis Carrol, Robert
Louis Stevenson, Victor Hugo e tantas outras almas que iluminaram a solidão primogênita
de minha infância.
Creio
que foi com sol a pino que saí de casa. Só sei que era cedo ainda,
faltou preparo. Ainda falta. Tive muitas mulheres, amei cada uma e fui muito
amado. Decepcionei-me com a faculdade, como profanavam saberes que me eram
sagrados. Graduei-me em movimento estudantil. Tive duas meninas, pedras
preciosas de um rio profundo. Escrevi. Ajudei quem eu pude.
(...)
Agora
que o entardecer se aproxima, a temperatura ameniza, o cheiro do vento tem mais
valor e as costas doem. Ainda há tanto o que fazer! Sinto que tudo o que fiz é
frágil e temo que venha a ruir. Tomo vitaminas e faço muita ginástica. Não por
mim, que já tive tudo. Mas pelos desamparados de minha ausência.
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