Friday, December 20, 2013

Arreda, indesejável!

No amanhecer de minha existência éramos pobres, meu pai era bravo e os carros eram quadrados.

Morávamos numa casa com quintal e jardim, e eu tinha uma tartaruga manca e um patinete. Descia com ele nossa rua de terra. Brincava no mato. Ia a pé pra escola e tomava tubaína na calçada. Apanhava muito na rua, mas não parava de brigar.

Lia tudo que estivesse escrito. Adorava isso, decifrar um código secreto que alguém tinha deixado pra trás, desafiador. Era possível saber que vinham 40 palitos de fósforo na caixinha (em média), e que a garagem com um entra-e-sai de panos e japoneses era "tinturaria". Descobri Monteiro Lobato, Júlio Verne, Jack London, Louisa May Alcott, James Matthew Barrie, Lewis Carrol, Robert Louis Stevenson, Victor Hugo e tantas outras almas que iluminaram a solidão primogênita de minha infância.

Creio que foi com sol a pino que saí de casa. Só sei que era cedo ainda, faltou preparo. Ainda falta. Tive muitas mulheres, amei cada uma e fui muito amado. Decepcionei-me com a faculdade, como profanavam saberes que me eram sagrados. Graduei-me em movimento estudantil. Tive duas meninas, pedras preciosas de um rio profundo. Escrevi. Ajudei quem eu pude.

(...)


Agora que o entardecer se aproxima, a temperatura ameniza, o cheiro do vento tem mais valor e as costas doem. Ainda há tanto o que fazer! Sinto que tudo o que fiz é frágil e temo que venha a ruir. Tomo vitaminas e faço muita ginástica. Não por mim, que já tive tudo. Mas pelos desamparados de minha ausência.

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