REFLEXÕES SOBRE A DOMA
Imagem gentilmente cedida pelo Lailson. Originalmente publicada em "Esta Vida é um Circo".
Passo a refletir acerca da doma, palavra que me apareceu ilustrada por uma charge de Lailson, em que um domador de circo tenta fazer com que uma tartaruga salte por dentro de um aro.
A idéia da reflexão veio-me por uma sensação incômoda causada pela visão da figura. Foi feita para ser engraçada (e é); mas algo está errado. Para além do paradoxo óbvio de que tartarugas não saltam, nem se prestam à doma, há um incômodo subjacente à primeira impressão jocosa.
A tartaruga parece olhar para o domador, espantada; e isso lhe confere uma humanidade que as tartarugas reais não possuem. Fora uma fotografia, e talvez a charge parasse no cômico – a tartaruga provavelmente ignoraria o homem, pois ele não é comida, e nem deveria despertar maior interesse; mas a tartaruga da figura encara o domador de maneira humana, e isso confere um caráter político à charge.
Comecemos pelo sentido, ou pelos sentidos: doma aparece no Houaiss como “ato, processo ou efeito de domar, domesticar (um animal); domação”.
Não diz muito; vejamos domar, o verbo de onde provém o substantivo: “reduzir à obediência (um animal selvagem), submetendo-o pela força bruta ou à custa de exercício e ensino; amansar, domesticar; submeter à autoridade (a propósito de adversários); subjugar, vencer; controlar, dominar (forças naturais); fazer algo ou alguém ceder; refrear (-se), reprimir (-se), conter (-se) [a propósito de paixões, emoções fortes etc.]”. (Mesma fonte).
Podemos perceber o incômodo de ver uma “tartaruga” com características humanas, e assim representando algo humano, submetida à doma: aplica-se a animais, inimigos e paixões.
No primeiro caso, estabelece uma relação em desnível, de humano para animal: e, portanto, o “domado” é menos que humano, e merece, não só tratamento de animal, mas tratamento de animal cativo, que perde sua liberdade, seu modo de vida e o convívio com seus iguais.
Por outro lado, o sentido de domesticar remete a “amansar (-se) o animal selvagem de modo que possa conviver com o homem” (id. ib.), e coloca a questão da utilidade do animal para o homem, a dominação da natureza e a sobrevivência do homem no planeta. Esta relação inscreve-se ainda no sentido de domar que diz respeito a dominar e controlar as forças da Natureza.
No segundo, outra relação de força e violência: vencer o inimigo, e, de maneira similar ao animal, privá-lo de sua liberdade – a qual, de outro modo, ele utilizaria para fazer-me perder a minha. Portanto, para o bem ou para o mal, uma relação entre iguais; mas entre iguais que travam uma batalha “animalesca”, de vida e de morte, pela dominação do outro.
Mas doma também se aplica a vencer emoções, paixões: a parte “animal” ou “natural” da psique. O domador, no caso, é a Razão; Razão que, na imagem de Platão, é o condutor da carruagem onde as paixões são os cavalos: na alma como no picadeiro, os animais devem ser submetidos pela força do chicote, e pela dor. O que é incômodo: todos gostaríamos de deixar livres nossas paixões. Refreá-las é doloroso, e exige justificação.
Assim, a idéia de doma é conflituosa por essência. Coloca em jogo duas forças irremediavelmente antagônicas, seja o homem contra o animal, seja o homem contra a natureza, seja contra outros homens, ou contra outras partes do mesmo indivíduo, este representado pela Razão.
Não obstante, o incômodo permanece em meu espírito: à dualidade real do antagonismo anexa-se, como uma sombra, uma dualidade moral: a da legitimidade da doma.
Ao colocar-se como domador, acima dos animais, da Natureza, e dos inimigos vencidos, o homem iguala-se aos animais: a legitimação de tais atitudes só pode se dar em termos de sua sobrevivência – o homem domina a Natureza, domestica animais, subjuga seus inimigos de forma a sobreviver – e, à medida que constrói uma justificativa moral de atos pela sobrevivência, diferencia-se dos animais que subjuga apenas pela construção dessa justificação, e não pelas ações elas mesmas. Ou haverá outra fonte de legitimação?
Que direito invoca o homem para exercer essa dominação? O direito de ser um Ser diferenciado, superior aos demais seres da Natureza. E o que tem o homem de diferente dos demais seres da Natureza que o faz reivindicar-se como superior?
Objetivamente, colocou-se bípede, liberou suas mãos, e utilizou-as como ferramentas de mediação de sua relação com a Natureza, criando simultaneamente um sistema cerebral mais complexo e autoconsciente; e um distanciamento da Natureza que permite analisá-la, criticá-la... e dominá-la. Desenvolveu, portanto, a Razão – logo, a mesma Razão com que domina a Natureza é a própria essência da justificação dessa dominação.
Portanto, se o homem exerce a dominação em nome da Razão, não pode abandonar a Razão na hora de exercer a dominação, sob pena de perder sua legitimidade. Ao mesmo tempo, esta é a justificação torna legítima a dolorosa repressão de nossas paixões.
Assim, a relação entre a Razão e a doma constrói uma ponte os três momentos da dominação: a doma dos animais e da Natureza em geral, dos inimigos e das paixões. Pois se abandonamos a Razão no trato dos conflitos com outros seres humanos, perdemos a legitimidade da domesticação da relação, e nos tornamos bandos de animais.
À medida que submete seus inimigos pela força, que é o que seus inimigos fariam com ele caso pudessem, o homem se iguala não só àqueles, mas aos animais de vida social, que fazem o mesmo e não têm meios de se entender de outra maneira. Mas o homem tem.
Da mesma maneira, a doma das paixões pela Razão é condição para as outras domas, pois, sendo as paixões e “fortes emoções” o estado da Natureza bruta em nós, tornamo-nos animais ao realizar a dominação do outro ou da Natureza, dominados nós mesmos por nosso lado animal.
Conclui-se que a doma só é legítima se realizada sob a tutela da Razão; e, para isso, devo, antes de domar o outro, domar a mim mesmo.
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