Tuesday, May 10, 2005

DIÁRIOS DO CANADÁ

Maio de 2005

30/04/2005

Cheguei, e a paisagem estava cinza.
Caía uma chuva rala e intermitente, e as árvores estavam nuas e secas, revelando um inverno rigoroso recém terminado.
A grama amarela com pequenas poças verdes anuncia que uma preguiçosa e tímida primavera vem, relutante e totalmente a contragosto, cumprir com seu dever.
A um tempo, invejo a passagem do tempo tão marcada que se vê longe dos trópicos. Imagino como este ciclo, tão explícito, entoado pelo coro colorido da natureza, vem trazer conforto ao espírito dos homens desse lugar, fortalecendo seu ímpeto realizador, e confortando sua solidão diante da crueza da existência.
Enquanto isso, ao mesmo tempo, não posso deixar de atribuir o ciclo à órbita solar do planeta, simplesmente; e rio-me de como esse mesmo espírito humano, como que não satisfeito com uma consolação natural e inevitável, atribui, em acréscimo, significados míticos aos eventos repetitivos, medindo-os, datando-os, marcando-os em papel e pedra, anunciando-os antes do tempo devido, e comemorando-os como obra divina.
O fato de encontrar uma paisagem diferente daquela dos guias de viagem, ao contrário de me decepcionar, provocou-me uma colisão com a realidade presente, fixando-me por inteiro no momento vívido:
Na segunda vez em que visitei o Canadá, chovia; e a paisagem estava cinza.

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1/05/2005

Pedi aos alunos um diário de suas experiências no exterior que relacione os fatos com os seus sentimentos diante dos fatos, e uma reflexão sobre os sentimentos.
Por que os sentimentos são importantes? Por que o sentimento importa? Cheguei à conclusão de que não se tem grandes administradores se não se tiver, antes, grandes homens.
E não se tem grandes homens se não se desenvolver grandes sentimentos.
Porque grandes homens são homens com grandes sentimentos. Sentimentos nobres, calcados na percepção humana e empática da realidade.
Uma percepção da realidade acompanhada do drama humano envolvido na realidade: uma percepção plena de significação humana.
Porque, se você vê uma árvore seca com galhos nus, você pode sentir a angústia e a solidão daqueles que viveram aquele inverno rigoroso; a alegria das pessoas que viveram por mais um inverno entre seus entes queridos; a tristeza sem remédio daqueles que perceberam que um ente querido não viveu para ver aquele inverno; o calor e o alívio daqueles que viram o inverno terminar e assistem ao início de uma outra primavera.
Mas somente as pessoas que percebem o drama humano para além da árvore serão capazes de desenvolver tais sentimentos. E, para desenvolver tais sentimentos, é necessário sair da concha de egoísmo e abrir-se para uma nova realidade plena de significados.
E para sair da concha de egoísmo é necessário perceber que os sentimentos de empatia estão potencialmente dentro de nós porque somos humanos – em potencial.
E nos tornamos plenamente humanos quando deixamos nossos sentimentos se desenvolverem.
Para ser um grande líder é necessário enxergar além da árvore seca.
É necessário enxergar além da árvore seca ao fazermos cálculos financeiros; é necessário enxergar além da árvore seca ao desenvolvermos planos de negócios – para sermos capazes de produzir cálculos financeiros plenos de significado e planos de negócio plenos de significado. Porque é justamente o significado – e não o grau de depuração dos cálculos e planos – que vai mover as pessoas em torno do líder.
E o melhor momento para tomarmos contato com esses sentimentos é quando estamos vivenciando uma experiência diferente das experiências hipnotizantes do dia-a-dia.
Porque o dia-a-dia rotiniza nossas ações, calejando nossos sentimentos e impedindo a reflexão.
A vivência de experiências extracotidianas dá-nos a oportunidade de retirar nossos sentimentos de seu sono dogmático, reavivando a chama da reflexão.

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2/05/2005

Hoje fiz meu pobre colega professor andar quilômetros comigo, no clima instável de Montreal, à procura de uma loja de materiais fotográficos que eu não sabia bem onde era.
No caminho, deixei alguns rolos de filme para revelação, numa loja que depois tivemos que andar mais ainda para reencontrar, porque eu a perdera.
À hora do jantar, exaustos, convidei-o para um vinho, com frios e pães comprados na mercearia (depanneur) de frente do hotel.
Durante o jantar mostrei-lhe um livro sobre Ansel Adams, e falei apaixonadamente sobre fotografia.
Talvez por efeito do vinho ou talvez porque meu colega é extremamente atencioso e educado, mas pareceu-me que consegui contaminá-lo um pouco com minha paixão pela fotografia.
Parece-me, em geral, que as coisas que são faladas de maneira apaixonada contaminam as pessoas, com a simples condição kantiana de que tragam de antemão algum sentimento dentro delas.
Acredito que o que se transmite em momentos como este não é o conteúdo pelo qual se tem paixão, mas a própria paixão: pois entramos em contato com sentimentos com este quando o fotógrafo fala da fotografia, quando o músico fala da música, quando o ator fala do teatro ou do cinema, ou mesmo quando falam de uma foto, uma música, uma peça. Quando o autor fala da obra, quando o namorado fala da namorada. Quando o enólogo fala de sua preferência pelo Pinot Noir.
Portanto, deve haver algo como uma paixão abstrata que é imediatamente reconhecida, por empatia, pelo interlocutor, que vive um pouco da paixão através do outro.
Este intercâmbio de sentimentos aproxima as pessoas e faz com que durmamos um sono mais leve.

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5/05/2005

Forecast News

Vi, na previsão de tempo matinal da TV, que o Rio St. John subiu devido às chuvas, e houve inundações em diversas cidades e estradas, ao norte de Quebec e Ontário, causando prejuízos a famílias e negociantes.
O primeiro fato a chamar a minha atenção foi a abordagem jornalística do canal de TV: fornecia às pessoas informações úteis sobre quais estradas estavam trafegáveis e quais não; como fazer seguro de seu patrimônio; como tomar medidas de emergência para proteção; enfim, o que fazer – ao invés da abordagem infantil e sensacionalista à qual estou acostumado a ver no Brasil.
Depois, vi algumas das pessoas que tiveram prejuízo sendo entrevistadas. Elas compareciam dignamente frente às câmeras, expunham o prejuízo, avaliavam-no de maneira otimista (“não foi tanto assim”), e anunciavam as providências que iriam tomar –e não perdiam o otimismo mesmo quando a providência era “vou começar tudo de novo”. Todos sorriam durante a entrevista.
Não sou ingênuo a ponto de não perceber a abordagem ideológica da transmissão, que quer passar uma mensagem precisa aos telespectadores, através da escolha e seleção do material a ser exibido.
Mas que ideologia!
Uma ideologia que diz às pessoas que elas devem tomar providências e precauções para cuidar de suas próprias vidas e de seu próprio patrimônio.
Foi impossível não comparar estas posturas – do jornal e das vítimas – com as posturas correspondes quando há inundações em São Paulo, no Verão.
A abordagem jornalística do canal de telejornalismo de mais alto nível disponível, a cabo, ainda assim é altamente sensacionalista e infantilizada, procurando a todo custo fazer o fato parecer pior do que é (muitas vezes as imagens mostradas não correspondem, em grau de terror, aos adjetivos do texto). Nenhuma informação útil e, para deseducar ainda mais a população que já não é muito educada, reforçando os sentimentos mais infantis e atrasados, faz o possível para demonstrar a tese – ideológica – de que o governo ou a administração pública locais “nada estão fazendo”.
As pessoas entrevistadas comportam-se como crianças, chorando ao expor o prejuízo, e culpando o governo. Algumas chegam a afirma que vivem o problema há quinze ou vinte anos, enquanto “ninguém faz nada” (!).
Por que a um povo ocorre a idéia de responsabilizar-se pelas suas decisões de vida, e pelas suas vidas, enquanto a outro ocorre a idéia de vitimizar-se e esperar providências do governo? Por que pessoas altamente educadas deseducam pessoas que precisam de ajuda, quando poderiam fazer exatamente o oposto para ajudá-las?
Haverá um “grau de maturidade social” relacionado ao grau de expectativas que as pessoas têm em relação ao governo versus a disposição de assumir um comportamento autônomo?
Terá a Sociologia algo a dizer a respeito?

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08/05/2005

Banff

Conheci Banff, e agora posso morrer tranqüilo.


10/05/2005

Um dia de sol

A previsão de tempo anunciou, eufórica, que a temperatura em Montreal chegaria aos 20º C. O apresentador literalmente mandou as pessoas saírem de suas casas e de seus escritórios para aproveitar o dia de sol que se anunciava.
Não sei se os canadenses fazem como eu e assistem à previsão do tempo antes de sair de casa. Talvez, mais senhores de seu próprio clima, consigam sobreviver sem aconselhamento; já eu, forasteiro, não.
Mas sei é que as pessoas fizeram o que o homem falou para fazer. A cidade é uma festa num dia de sol. Os restaurantes apressam-se em colocar mesas e cadeiras nas calçadas, e as pessoas comem ao ar livre. Executivos de ternos caros, e executivas em tailleurs elegantes sentam-se às escadarias para comer comida no colo, sob o sol. Estudantes desnudam-se em qualquer pedaço de gramado que a cidade oferecer. Praças viram centros de esporte de verão, peles à mostra, como se os participantes estivessem há meses planejando a ocasião. A cidade ganha um colorido alegre nos rostos e nos gestos mais leves dos transeuntes.
Depois de andar a pé pela cidade durante hora, entrei suado no elevador da universidade, junto com uma professora cuja elegância impunha um comentário que desculpasse o estado lastimável de meu trajar:
— Calor, hoje, não?
— Graças a Deus!!
— As pessoas aqui apreciam bastante...
— Principalmente depois do inverno!
Percebi como o sol é raro e valorizado naquela latitude; e como nós, tendo-o a nos fartar, nem o percebemos como valor, chegando a desejar o inverno.
Descobri que os canadenses se referem ao Brasil não como o país do carnaval, nem como o país das praias ou das mulatas, mas como o país do sol e do calor.

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